Por Nonatto Coelho
Em plena primavera de 1983, em uma tarde de calor, eu saí de meu atelier, que na época se situava em um recanto lírico (uma bela construção em estilo Art Deco) situado onde hoje é o Museu Wilfrido Schmaltz, da Praça Santana na cidade de Inhumas-GO, fui até a capital do Estado, Goiânia-GO, estava à procura de alguém que estivesse disposto à fazer uma apresentação literária, um texto referente ao meu trabalho pictórico.
Fui direto para a lendária Casa Grande Galeria de Arte (na Rua 8 número 57, centro de Goiânia) lá encontrei minha mecenas e amiga Célia Câmara, e já sabendo que ela estava sempre disposta à me ajudar, perguntei se ela poderia me indicar alguém para escrever sobre minha pintura. A eterna madrinha e protetora dos artistas goianos, indicou algumas personalidades, alguns dos "escribas" que compunham o time de profissionais do Jornal O Popular, o mais importante veículo efeméride de fatos e notícias escritas no Estado de Goiás, pertencente à família Câmara.
Dentre os nomes sugerido por Célia, constava o nome e o telefone de um importante Escritor e poeta, colaborador do jornal O Popular: o Gabriel Nascente.
De lá, telefonei imediatamente para o mesmo, e para minha alegria, ele se dispôs a me receber naquele mesmo momento em seu apartamento no centro da capital do agrobusiness, no qual, sem perca de tempo, fui rápido ao encontro do antropo, que já era uma verdadeira lenda, envolta em mistérios da literatura Goiana/Brasileira.
Gabriel Nascente me recebeu com um largo sorriso emoldurado por um bigode preto, olhos iluminados, olhar penetrante, de uma curiosidade humana, típica de sua singular pessoa, que acompanha a sua envolvente personalidade vigorosa e viril, espiritualmente falando. Me perguntou educadamente, em que ele poderia me ajudar. Me apresentei emocionado por estar no ambiente do famoso poeta, mostrei alguns quadros meus que levava debaixo do braço, e sem mais delongas perguntei se o mesmo poderia escrever algo sobre minha pintura.
O poeta observou atento as minhas pinturas, passou a mão cofiando o bigode preto e espesso, e, olhando-me demoradamente, pediu que eu me sentasse em uma confortável poltrona azul de couro, espaçosa, me ofereceu uma dose de whisky Jack Daniel's Old, que aceitei de pronto, entendendo a importância daquele momento; ele me serviu, se serviu também; brindamos em nome da arte e poesia Goiana, e ele, sentando em uma mesinha de Jacarandá diante de uma pequena máquina de escrever da marca Olivetti, acomodou seu copo de whisky em cima da mesinha onde tinha alguns bibelôs, retratos em preto e branco emoldurados em porta-retratos estilos rococós, e, em silêncio como que em um transe literário, no intervalo de gole de whisky e outro escreveu ao vivo e na minha frente uma lauda de texto, no qual entre tantas palavras maravilhosas, eu destaco aqui um trecho que diz assim: "...é assim que me chega em meio ao calor de uma dessas tardes de outubro, a obra plástica do pintor Nonatto Coelho (esse goiano/mineiro de Inhumas), o moço que em pleno fins de sua última quadra da puberdade já tem a nítida sensibilidade para transformar um impulso intelectivo em pinturas que denunciam o endemoniado espírito da maldade humana, que age para exterminar o fôlego dos inofensivos. Como o sapo."
E o poeta arremata o texto dizendo, "seu trabalho de hoje (óleo sobre tela) serve como amostra do que ele será capaz de fazer amanhã, dentro de outros desafios imaginários onde a sua inspiração, a sua arte, hão de provar o seu desmedido amor, respeito por tudo quanto está respirando sobre a terra, agora desgraçadamente ameaçado pelo cão mefistofélico que vive dentro de cada homem ". O texto escrito há 39 anos é tão atual como se fosse hoje, com a agravante de que nesse exato momento, o Brasil passa por um período claro de desprestígio da arte e da cultura em geral. Talvez estamos diante de crise humanística...
Para mim aquele texto foi um prêmio à minha iniciante carreira artística, usei o mesmo em várias ocasiões em impressos referentes à minha pintura.
Em gratidão, presenteei o Gabriel Nascente com um dos quadros que tinha levado comigo.
Saindo do feliz encontro com o poeta, voltei à galeria Casa Grande, agradeci Célia Câmara pela ajuda oportuna que ela havia me proporcionado na realização do meu objetivo.
Voltei para Inhumas com um largo sorriso no rosto e na alma.
Hoje, o consagrado poeta é o mais importante e o mais prolífico agente da poesia entre nós, e seu desmedido amor pelo amálgama cultural em nosso Estado, se estende à arte visual, e ele é o idealizador, o coordenador e o curador da primeira e única Pinacoteca no Estado de Goiás.
O poeta hoje, na sua condição de Assessor Cultural do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, e nas dependência do suntuoso edifício que está ao lado do Bosque dos Buritis no centro de Goiânia, nos apresenta a PINACOTECA DESEMBARGADOR CAMARGO NETO.
A Pinacoteca provisoriamente em um espaço de improviso (a sede permanente, me confidenciou Gabriel, será uma arrojada construção arquitetônica inspirada no MASP - Museu de Arte de São Paulo onde Lina Bo Barde desafia a gravidade do famoso edifício da Avenida Paulista) sediará a atual coleção de arte da Pinacoteca em expansão, pois o acervo de peças artísticas, aumenta exponencialmente graça ao trabalho incansável da sua coordenação.
A Pinacoteca aberta ao público amante da arte, está composta por alguns dos mais proeminentes nomes da arte produzida em Goiás, tais como Fé Cordula, DJ Oliveira, Roos, Tancredo Araújo (in memoriam), Waldomiro de Deus, Siron Franco, Brenda Lee, Diomar Lustosa, Omar Souto, Sanatan, Yashira, Malaquias, Lourdes de Deus, Manoel Santos, Helena Vasconcelos e tantos outros importantes nome vivos, ou que não mais se encontraram entre nós, compõem o acervo permanente da instituição, com a custódia e chancela cultural do TJGO.
Até o quadro que eu presenteei o Gabriel Nascente, no nosso primeiro encontro, ele doou para o acervo da Pinacoteca. Aliás, o poeta em um gesto de altruísmo artístico e desprendimento pessoal, doou toda a sua coleção de arte ao acervo da referida Pinacoteca, para o deleite dos amantes da arte em Goiás.
Os poetas, por extensão, são os lexicógrafos que através de suas sensibilidades, nos mostram a textura, o sabor, a dor e as delícias do mundo visível, tangível e supostamente metafísico.
Poetas, através de suas escritas e fonemas, nos fazem sentir a vida na sua plenitude. O seu verbo, o poema (que em minha modesta opinião é a fina flor de tudo que tange a literatura), se traduz em síntese da nossa passagem fantástica por esse mísero acanhado planeta e suas adjacentes vizinhanças cósmicas, na vida que pulsa e freme de entusiasmo, emoções, devaneios, e, porque não, também nos momentos atrozes da vida.
Tudo é dinamismo, se me permitem relativizar. A poesia está contida em tudo, basta saber extraí-la.
Sem os poetas o mundo não teria a graça, as crianças não voariam nas nuvens, absortas vendo os animais metamorfoseando na fumaça fugaz de suas atmosferas, os pássaros não gorjeiariam, os amantes se despiriam sem o inebriante lirismo que torna a vida um espetáculo...
O Estado de Goiás necessita de empreendedores culturais do porte intelectual e de viés democrático a exemplo de um Gabriel Nascente, essa é a primeira Pinacoteca de nossa região, criada de maneira espontânea, sem ambições supérfluas, sem sofismas desnecessários de curadores estéreis que pululam no ambiente da arte. Simples e sofisticado como o próprio poeta idealizador, essa é tônica da instituição.
Porém, entretanto eu vos digo, dado a densidade do amálgama artístico deste Estado, é preciso que tenhamos mais Pinacotecas públicas, é preciso que o poder público e a iniciativa privada exemplifique, repita e apoie essa salutar iniciativa sediada no TJGO, a própria Célia Câmara, considerada a madrinha da arte moderna e contemporânea em Goiás, amealhou com lupa e carinho, uma importante coleção de artistas brasileiros, e isso em meu ver, é tema e conteúdo para a ampliação e construção de mais Pinacotecas em nosso Estado. Que o exemplo de Gabriel Nascente possa ser didático, fundamental em nosso meio.
Parabéns poeta Gabriel Nascente, sua iniciativa pioneiro é louvável em uma jovem e rica capital da federação brasileira, que tem o dever de apoiar e incentivar os artistas de nossa região.
A arte visual dissolve a poesia retiniana no cotidiano das pessoas, facilitando a compreensão de todos nós possuidores desse mirifico sopro de Deus, chamado vida. O próprio poeta Ferreira Gullar já nos alertou dizendo que "a arte existe porque a vida só, não basta". Eis o doce mistério da arte.
Nonatto Coelho é artista e pesquisador.
Inhumas 12 de outubro de 2022